sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Sobre Calendários e Convenções I


Sobre Calendários e Convenções


Levantou atrasado, tropeçando no cobertor embolado, despertador tilintando em eco estridente... "Maldita segunda-feira!" - Pensou enquanto tentava desajeitadamente vestir a calça e escovar os dentes ao mesmo tempo. O espelho quebrado fez lembrar da visita à loja que fora adiada. Resmungou qualquer coisa inaudível, enquanto requentava o café fraco do dia anterior no microondas. "Maldita segunda-feira!" - Desta vez pronunciou com voz rouca, aquela voz sufocada de quem acaba de acordar. Pela porta do apartamento passou atropelado, com a pasta preta reluzente em uma das mãos e as chaves do automóvel tilintando na outra. Gravata sem nó, camisa com botões trocados e amarrotada... Rezando uma oração inventada, ele olhou para o elevador enguiçado desde a semana anterior e flutuou pelos quatro andares de escada que o separavam da garagem. "Que ótimo!" - pensou quando o alarme do carro demorou a desligar e apitou irritante, enquanto ele martelava o controle insistentemente. Não muito tempo depois era ele o motorista que mais xingava na avenida congestionada de uma capital que despertava para o dia de voltar ao trabalho. Pedro era o tipo de cara de que a vida não tinha dó e que não tinha talento para vítima. Mas, a segunda-feira lhe pregava peças ou era ele mesmo que aceitava tudo do jeito que estava. Desceu a ladeira que levava para o escritório no desespero da contagem regressiva. A segunda-feira e o atraso aram parceiros antigos. A vaga no estacionamento estava ocupada por um engraçadinho qualquer. O bom senso dizia: "Não faça!" , mas ele fez... Estacionou na vaga reservada para deficientes físicos. "Só pode ser castigo!" - pensou ao pisar em algo de consistência duvidosa, provavelmente deixado por algum cachorrinho de madame que vivia muito mais feliz que ele. Tomou o jornal da porta do escritório para tentar limpar o sapato. "Desgraça de segunda-feira é pior do que praga de mãe..." - pensou acelerava os passos escritório adentro, tentando dar nós na gravata sob o olhar recriminador da telefonista que atendia no balcão pardo da recepção. Os papéis empilhados de forma nada organizada sobre a mesa antiquada de madeira, o telefone pardo a tocar já na primeira hora, o arquivo cinzento de metal com cara de reforma adiada... Era segunda-feira. Como diziam os humoristas dos programas de fim de domingo: "Segunda-fera". Coisa de maluco, ou não, às vezes ele imaginava o escritório como um grande dinossauro de boca aberta, pronto para devorar os funcionários incautos que atravessassem a porta. As grandes garras e mandíbulas disfarçavam-se de paisagem na imaginação de Pedro. Tinha vezes que ele ficava se perguntando se viveria para ver os carros serem substituídos por naves espaciais. Era muita imaginação fértil para uma manhã sobrecarregada de segunda-feira só. Atendeu o telefone com uma simpatia forçada. "Maldita segunda-feira!" - sua mente repetia como um mantra. Coisa que deveria ser extintas é o atendimento ao consumidor via telefone, "Inferno de Dante com interferência e chiado" - pensava Pedro. Xingando até a própria cadeira de estofado rasgado, cujas molas rangiam de vez em quando, ele atendia o aparelho telefônico, rabiscava os papéis e começava tudo de novo. O indivíduo do outro lado da linha, muitas vezes, nem sabia o que estava reclamando, depois de longo embate, recebia um número de protocolo e a linha era reocupada. "Maldita segunda-feira que nunca acaba." - ele pensava e olhava para o ponteiro dos segundos que se arrastava. Vida medíocre de assalariado terminava em utopia de fim de tarde, de fim de mês, de fim de ano. Pedro sempre esperava que o horário de almoço trouxesse uma coisa nova, uma surpresa boa. Mas, a vida era mesmo ingrata, pensava ele. Em fevereiro, feriado ou segunda-feira tudo acaba do mesmo jeito. E ele entrava na fila do restaurante de comida a quilo e sempre que chegava perto do compartimento da lasanha, salivando, faminto, descobria que já estava vazio. Na falta do prato esperado, a louça branca acabava abrigando sempre o mesmo arroz mal cozido, com feijão desbotado e bife mal passado.. O restaurante sempre estava abafado e com cheiro de fritura, a toalha plástica xadrez vivia engordurada. O suco de laranja nunca estava gelado e, embora, possivelmente, fosse artificial, tinha gosto de fruta passada. De vez em quando, Pedro fingia ler qualquer revista ou jornal velho, que trazia do escritório para fazer um boa figura. Nesses dias fazia cara de intelectual e olhava de soslaio por sobre o jornal, tentando descobrir o que as pessoas pensavam ao olhá-lo, se é que o faziam. Às vezes trocava olhares com uma colega de escritório qualquer... Às vezes, era só impressão mesma, já que Sandrinha, como chamavam os colegas de escritório, era meio estrábica e nem percebia que ele existia. Em plena segunda-feira, lá estava ele lembrando do par de meias trocadas, das calças curtas e saindo de fininho, como se ninguém tivesse percebido que ele calçava uma meia cinza e a outra branca e que a calça fora encurtada demais durante um reparo da bainha. "Maldita segunda-feira!" - pensava ele em contagem regressiva, enquanto escovava os dentes. A desgraça nunca vinha sozinha. Nem escovar os dentes em paz em banho público era possível. Corrida contra o tempo na espera do elevador. Era hora de voltar ao trabalho, na tarde mais quente do ano... E na mesa descascada, pensar mais uma vez:

MALDITA SEGUNDA-FEIRA!!!

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